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terça-feira, 31 de julho de 2012

I. Stravinsky

Stravinsky não é apenas um grande compositor. É também o protagonista de um produto fantástico, um novo tipo de música amusical, uma rebelde, surpreendente e, por consequência, sedutora harmonia de discórdias.
Murmurava-se que ele era um deus pagão redivivo, que descera das alturas do Olimpo para dançar diante dos homens. A Rússia prostou-se-lhe aos pés para adorá-lo. As mulheres entravam em transes a sua aproximação.
Lograria Stravinsky escrever uma música suficientemente horripilante? Ele assumira os encargos de um doutor feiticeiro dos sons.
Engana-se quem espera que a música deva expressar alguma coisa. A música, verdadeiramente, não deve evocar sentimento nenhum. “Toda emoção é uma ilusão. A única propriedade da música é a sua estrutura intelectual. A música há de ser admirada e não gozada”. Sem embargo, seduzia as paixões primitivas do gênero humano.
As qualidades emocionais que faziam rebolar as cadeiras não o interessavam, pois decidira, inexoravelmente, que a música há de ser intelectual e não emocional. Compreender as paixões alheias? Sim. Mas sucumbir a elas? Positivamente não. A curiosidade desse homem era insaciável. Não o comovia de maneira alguma a beleza voluptuosa da musa. Preocupava-se muito mais em estudar-lhe as vértebras da espinha. Não era um poeta da emoção tonal, mas um cientista do colorido tonal.
O espírito americano, inventivo, deixa-se fascinar pela novidade na arte assim como na ciência. E Stravinsky é sempre novo, sempre experimental, sempre único. Sempre se poderá esperar dele o inesperado.
A sua música, como as suas palavras, podiam, por conseguinte, dar-se ao luxo de não ter sentido – um ritual arcaico para uma religião fora de moda, que teria a pomposa dignidade e a sagrada frigidez de uma consagração religiosa a um deus morto. E este homem odiava de tal forma o sentimentalismo que nos faz desconfiar que era, no íntimo, extremamente sentimental. Foi assim que surgiu o oratório, tentativa irracional de recapturar o racionalismo dos antigos pagãos. Não capturou, contudo, nada de sua beleza, mas tão somente a sua frieza de mármore.
Stravinsky está se tornando cada vez menos poeta e cada vez mais professor, sacrificando a arte à excentricidade, o coração ao espírito. A maior das músicas, acredita ele, há de seduzir o espírito e não o coração.
A atitude desses outros, todavia, não o fará desviar-se do seu caminho. Não cederá diante dos “que, em sua cegueira, não compreendem que estão pedindo que eu retroceda”.
Em outros tempos tivera ele uma visão acerca de uma boneca em uma feira. Dotada subitamente de vida, a boneca dançou durante algum tempo, compreendeu as alegrias e as tristezas da vida, e depois morreu como qualquer criatura humana. A música de Stravinsky a propósito dessa boneca era colorida, irônica e sobrecarregada de emoção. Patrushka, a boneca que sofria como um ser humano. A boneca mecânica vivera uns poucos momentos elétricos diante do aparato cintilante de um bazar, dançara e amara com intensa paixão e logo – que ironia! – morrera de um excesso de sentimento humano. Assim também a musa de Stravinsky, mecânica por natureza, tivera por uns poucos momentos um coração e derramara a música do sentimento humano. O coração, porém, morrera logo depois sufocado pelo excesso da própria emoção. E hoje, a musa de Stravinsky é, de novo, uma inteligente boneca mecânica sem coração.





Eu, Álison

domingo, 29 de julho de 2012

J. Sibelius

Manifestou-se-lhe cedo, embora não precocemente, o talento musical.
Nem bem eram decorridos dois anos quando, sem nenhum treino metódico, começou ele a expressar-se numa linguagem musical própria. Rejeitando a influência dos clássicos, entrou a formar um novo idioma, uma interpretação individual das nórdicas paisagens com a espuma dos mares, as suas florestas e as suas montanhas. De tal arte se absorvia Sibelius na música e nos sonhos que prestava pouquíssima atenção às aulas do colégio.
No refúgio do seu quarto, contudo, compunha a seu belo prazer, utilizando-se do estilo e dos métodos próprios.
“Eu não podia resistir à impressão de ser um escavador desenterrar esqueletos do passado”. Sibelius estava destinado a tornar-se um dos grandes paradoxos da música moderna.
O seu amor à natureza – ou para expressá-lo em seu sentido mais lato, o seu amor à vida – era nele uma religião. A música é apenas um dos espelhos que refletem a vida.
O compositor cometeu toda a sua vida espiritual ao julgamento da própria alma. Não se deixava influenciar pelos valores convencionais alheios, especialmente pelos dos críticos profissionais que se propunham a estimar o infinito da arte através do finito dos seus óculos.
As suas lutas era mentais e não materiais. “Dir-se-ia um pensamento nascido debaixo de um céu enfarruscado forcejando, lentamente, por alcançar regiões mais puras”.
Quando alguém proclamava, aos berros, seu amor a outrem, não faz outra coisa senão por em praça seu amor a si mesmo. Sibelius não acreditava na demonstração vulgar de emoção. A harmonia do controle é tão necessária nos tons da orquestra como nos sentimentos do coração humano.
Existe amiúde um grande abismo – diz Sibelius – entre os temas ideais que atravessam o cérebro do compositor e os sons audíveis que chegam aos ouvidos dos frequentadores de concertos em sua forma final. “Há na música, como na vida, toda a sorte de obstáculos à expressão efetiva das nossas ideias”.
Nunca foi a melancolia da vida mais sincera ou mais graficamente expressada. Ninguém mais, entretanto, teria sido capaz de entendê-la, pois trata-se de uma expressão pessoal profunda e única pertencente a um mundo próprio – um mundo que nenhuma outra composição musical pôde jamais penetrar. É a casta criação de um gênio austero e retrata a força inquieta de um destino esmagador.
Principiara a vacilar a fé que possuíam muitos homens voltados para as coisas do espírito. Sibelius já atingira em sua música as profundezas do pessimismo. Mesmo antes da guerra impressionara-o profundamente o espetáculo da desumanidade do homem em relação ao homem.
Sibelius encerrou sua série de sinfonias no número mágico – sete. E nessas sete sinfonias demonstrou uma versatilidade somente igualada por Beethoven.
Como no caso de Beethoven e Shakespeare, surpreendemo-nos a fazer a seguinte pergunta: “Pode um espírito humano abranger tamanha diversidade de pensamento?”.
“Ninguém suponha que a composição se torna mais fácil com o passar dos anos quando o compositor leva a sério sua arte. Quanto mais velho o artista, maiores as exigências que faz a si mesmo... A gente vive a topar com problemas novos”.




Eu, Álison

sábado, 28 de julho de 2012

G. Puccini

Lá se reuniam moços de talento de todas as partes da Itália. Os músicos devotavam-se às técnicas da composição e à arte do amor. E toda a gente cantava – alegre e melodioso coral em honra da deusa da alegria.
Puccini assistira à estreia e lágrimas de comoção tinham-lhe assaltado os olhos diante dos aplausos tumultuosos – lágrimas de felicidade pela boa fortuna do amigo, mas também lágrimas de dor e de inveja, pois ele ainda não obtivera distinção.
Derivava-lhe rápida, mas não profunda, a corrente do gênio. O narcótico de sua música destinava-se, todavia, a encantar o mundo.
“No dia em que eu não mais me apaixonar, poderão me encomendar o enterro”.
Puccini vivia perseguido por essa espécie, aliás, desejável, de lunatismo. O seu principal prazer, no entanto, era a solidão. A conversa dos amigos, a fumaça densa a subir para o teto e a música a sair-lhe borbulhante da ponta dos dedos – tal era a ideia que fazia da solidão, do céu na terra.
Para além do avarandado, estendia-se em lago de prata, contrastando com o firmamento noturno. E lá, ao piano, enquanto tecia os seus sonhos, a observar o lago e a floresta, sentia-se, ao mesmo tempo, criador e parte íntima de toda a criação.
“Mas é imortal, porque ama com o coração que sabe sofrer. Tocarei agora a cena da morte, que acabei de completar”. Ouvindo a música, sentiram os amigos que a comoção os subjulgava.  – Você também será imortal – observou um deles.
Puccini sorriu. – talvez.
Em sua música não havia força cósmica. Não falava a linguagem dos deuses senão a das criaturas humanas.
O destino – mestre da surpresa pondo termo ao drama da vida humana.




Eu, Álison

sexta-feira, 27 de julho de 2012

C. A. Debussy

Era aos sete anos em sujeitinho reservado, quieto, meditativo, que nunca brincava com as outras crianças.
Rico material para a construção de novos edifícios de música. Torres enfeitadas de arabescos de desenho delicado. Palácios encantados de sons sem precedentes.
“Quem são, afinal, esses juízes? Que sabem a respeito de arte? Terão, acaso, a certeza de serem eles próprios artistas? De onde deriva, então, o seu direito de conduzir a barca misteriosa do gênio?”.
Debussy exultou. “Graças a Deus”, disse ele, “consegui, finalmente, escrever alguma coisa original!”. Irrequieto, andava de um lado para o outro no quarto enquanto compunha, um toco de cigarro na boca, música rebelde no coração. Ele revolucionaria o mundo dos sons.
Pouco se lhe dava a opinião pública. “Umas poucas pessoas apreciarão as minhas obras. E quanto ao resto, não me importa o que possam pensar”.
Porfiava sempre em arrancar-lhe cadência nova, a estranha sequência de cores, a combinação sutil de sons, os ecos de vozes encantadas vindas de mundos desconhecidos.
Aborrecia a necessidade de roubar tantas horas às realidades dos seus sonhos para dedicar às inanidades da existência. Os seus pensamentos, como seus hábitos, eram irregulares.
Os seus verdadeiros prazeres, no entanto, tinha-os nos sábados à noite, quando os velhos e queridos amigos se reuniam em sua casa.
Tornara-se perito no sutil matizar das palavras, assim como era perito na matização sutil dos sons.
O seu desprezo aos outros, entretanto, era contrabalanceado pela sua modéstia em relação a si mesmo. Raramente falava da própria música. Nunca se considerou um grande homem.
Não tenho feito outra coisa senão realizar experimentos a fim de satisfazer o meu gosto pelo inexpressível. Em lugar disso, uma encantadora corrente de música que transporta os corações de alguns poucos iniciados para aquelas “mágicas janelas encantadas, que se abrem na espuma de mares perigosos, em perdidos recantos de fadas”.
Crianças refugiadas, perdidas no inferno do campo de batalha. Nada veem à volta de si senão o frio, a fome, o medo e a incerteza do futuro.
“O artista na civilização moderna”, dizia, “será sempre uma criatura cuja utilidade só há de ser reconhecida após a sua morte”. Desdenhava o materialismo do mundo. Evitava a companhia dos homens de negócios, da maioria dos homens.
Mas o seu tempo de amar, e de viver também, chegara quase ao fim. Atacado de câncer, os últimos anos de sua vida foram anos de tortura. De princípio, buscou esconder dos amigos a enfermidade. Por que aborrecê-los com as suas preocupações? Não tinham eles, acaso, preocupações próprias?
Proféticas palavras!




Eu, Álison

quinta-feira, 26 de julho de 2012

N. A. Rimsky-Korsakov

O seu caráter, como sua música, tinha mais a perfeição da ciência que da paixão da arte.
De vez em quando, no entanto, “por brincadeira”, e movido de uma curiosidade científica por separar as coisas e tornar a ligá-las, “compunha música e reunia notas”.
“Obedeciam-no cegamente, pois o fascínio da sua personalidade era tremendo”.
“Vocês devem mergulhar, intrépidos, no oceano da composição”, dizia ele, “e aprender a afundar ou a nadar. Se tiverem talento para nadar, tanto melhor para vocês. Se forem infelizes a afundarem, tanto melhor para o mundo”.
Ele cessara de acreditar num Deus que permitia tamanhos males debaixo do sol. Buscava, porém, encontrar consolo na música. Como fossem desatendíveis as suas obrigações a bordo, sobejava-lhe tempo para consagrar-se a música – e ao estudo da astronomia. O oceano é um magnífico ponto de observação para se contemplar o esplendor do firmamento.
“O azul escuro do céu durante o dia era, à noite, substituído por fantástica fosforescência. À medida que navegávamos para o sul, tornava-se o crepúsculo cada vez mais curto e as estrelas e os planetas rompiam sobre nós com súbito esplendor. Que refulgência na Via Láctea, com a constelação do Cruzeiro do Sul. Que magnificência de Canopus, nas estrelas do Centauro, no vermelho ardente e brilhante de Antares, visível na Rússia como pálida estrela nas noites claras de verão! Sirius, que na Rússia se vislumbra nas noites invernosas, parecia aqui duas vezes maior e mais brilhante. Logo se tornaram visíveis todas as estrelas de ambos os hemisférios. A Ursa Maior via-se baixa, justamente acima do horizonte, ao passo que o Cruzeiro do Sul se elevava cada vez mais. A luz da lua cheia, submergindo entre as nuvens amontoadas e delas emergindo, era simplesmente ofuscante. Maravilhoso é o oceano tropical com sua cor azul e seu brilho fosforescente; maravilhosas são as nuvens tropicais ao pôr do sol; mas o firmamento tropical, à noite, sobre o oceano é a coisa mais maravilhosa do mundo”.
Sentiam os amigos que nele havia um grande gênio mal aproveitado, e em certos momentos expressavam a cínica esperança de que lhe ocorresse alguma coisa que lhe permitisse ter tempo suficiente à sua composição.
Nalgumas poucas ocasiões apenas lograram as realidades amargas da vida interromper-lhe os sonhos deliciosos da fantasia.
Tudo isso, no entanto, nada trouxe senão enleio para o pequeno conservador que sonhava os seus sonhos encantados. Foi-lhe restituído o cargo de professor e ele pôde, mais uma vez, deslizar para a serenidade dos sonhos depois do mergulho repentino e atemorizador no pesadelo da realidade.
E assim, a sonhar, escreveu mais uma ópera encantada, e recolheu-se depois ao sono sem sonhos.





Eu, Álison

quarta-feira, 25 de julho de 2012

P. I. Tchaikovsky - Continuação

Convidou Tchaikovsky a visitá-la em sua ausência, a examinar os seus livros e a considerar os seus quadros, de sorte que, ao voltar, sentisse ela a atmosfera impregnada da personalidade dele.
Tchaikovsky, porém, que era a alma mais delicada da terra, sabia defender com firmeza os seus direitos. “Perdoe-me, querida amiga, e ria-se da minha esquisitice. As nossas relações, no pé em que estão, constituem a minha maior felicidade e a rocha sobre a qual repousa todo o meu bem estar. Não desejo fazer-lhe a menor alteração”.
Durante quarenta e oito horas “bebeu ela toda a magnífica beleza da melodia, recusando-se a comer ou a beber”.
Possuía-o, de vez em quando, uma fúria quase assassina. “Já sei”, escreveu ele sinistramente, “como um homem, não sendo mau por natureza, pode converter-se num criminoso!”. Voltaram-lhe as antigas crises de nervos – a insônia, a perda de peso, as cãibras cardíacas, os pesadelos.
A ideia de que não valho nada, de que somente o meu trabalho musical me redime dos meus defeitos principia a oprimir-me e torturar-me. A única maneira de subtrair-me a essas dúvidas atormentadoras e a essas autoflagelações consiste em encetar novo labor. Só o meu trabalho pode salvar-me.
“As palavras são inúteis para descrever a emoção que me avassala quando concebo uma nova ideia e esta principia a tomar forma definida”.
Tchaikovsky, porém, confessou ingenuamente que tinha medo aos outros. “Durante toda a minha vida os contatos sociais me fizeram sofrer”. Não sabia definir com exatidão o que havia nos outros que tanta angústia lhe causava, mas o caso é que a sociedade o atormentava. Confessava saber quanto lhe minguara as oportunidades de êxito essa timidez. Mas desistira da luta. “De fato, agora que posso esconder-me em minha toca e ser sempre eu mesmo, visto que os livros e a notação musical são hoje meus únicos companheiros, sinto-me perfeitamente feliz”.
É a única pessoa no mundo que me pode fazer profundamente feliz. E expressou o desejo de toda a sua alma de que jamais se alterasse, jamais terminasse o que quer que inspirasse o seu afeto por ele, “porque uma perda dessa ordem seria, para mim, insuportável”.
Terminava a carta com umas poucas palavras casuais, totalmente destituídas de calor: “Não esqueça, e pense em mim de vez em quando”. O tom dessa carta petrificou-o. “Poderei, porventura, esquecer tudo o que você fez por mim, tudo o que sua amizade significou para mim e para minha música?”
“Estou perturbado demais para escrever com clareza”.
“Isso, porém, aconteceu e toda a minha confiança nas pessoas, toda a minha fé no mundo se extinguiram. Foi-se-me a paz e toda e qualquer felicidade que o destino possa haver-me reservado está empeçonhada para sempre”. Esta última carta nunca teve resposta.
Alguma força irresistível tomara conta dele... Uma ansiedade profunda e inexplicável, um desespero que pedia o esquecimento às distrações, onde quer que fosse...
Tão lindas eram as suas melodias que lhe haviam arrancado lágrimas dos olhos. A Sinfonia Patética foi a última coisa que ele escreveu. Era o testamento em que legava ao mundo a chama do seu gênio e a beleza da sua cor.
Durante quatro dias agonizou e, no quinto, encontrou o repouso. Fim estranho de uma estranha existência. Um gênio a quem o Destino havia dado os sons de um deus e a quem negara as energias de um homem. Quais teriam sido os verdadeiros pensamentos de tão triste e incongruente personalidade?




Eu, Álison

segunda-feira, 23 de julho de 2012

P. I. Tchaikovsky

Não se lhe detinham os olhos nas mulheres nem os ouvidos ouviam ternos murmúrios de amor. Dizia-se que ele tinha medo ao amor, à amizade, a todo e qualquer contato humano. Ele era só porque era grande, como uma estátua colocada sobre um pedestal, que pudesse olhar por cima das cabeças da multidão, mas não pudesse descer para sentir o contato de uma mão humana. Pode uma estátua inspirar veneração, mas não pode exigir amor.
Algo melancólico é verdade, mas a própria melancolia lhe quadrava ao melancólico temperamento.
Ao sabor das ondas, no mar dos sons, sem encontrar à vista a seguridade de um porto.
Tchaikovsky, não raro, sentia possuí-lo uma sensação esquisita quando caminhava pelas ruas ou regia no Conservatório. Dir-se-ia que a cabeça estivesse prestes a cair-lhe dos ombros. Era um caso mau de nervos. Cãibras cardíacas, dores de cabeça e crises de indigestão.
No Conservatório, era tido por um enigma. Não obstante, mostrava-se sempre um gentil homem, embora frio, aristocrático e distante. Contudo, continuava a ser, como sempre, infeliz. Dizia-se mal dele, que era esquisito, que era incapaz de amar normalmente uma mulher.
Far-lhe-ia bem o casamento se lograsse encontrar a mulher que lhe conviesse. E enquanto Tchaikovsky se entretinha em procurar essa mulher, a mulher o encontrou. Era uma criaturinha moça, atraente, histérica e agressiva. Peter cedera, unicamente por fraqueza, avisando-a de que a não poderia amar, de que era pobre, insociável, irritável por natureza e intratável. Casaram-se e, por um momento, Tchaikovsky foi feliz.
“Sem embargo, olho para tudo isso com a mais profunda repugnância”. O grito medonho continuava a espancar-lhe o ouvido interior: “Sou um anormal!”. Precipitou-se para fora do apartamento e pôs-se a correr cegamente pelas ruas escuras da cidade. Quando deu por si estava à beira do rio Moscóvia. Penetrou as águas geladas, até a cintura, e retornou depois, cambaleante, a casa, anelando por apanhar uma pneumonia e morrer. “Ele acaba de passar por uma tensão muito grande. Qualquer coisa o abalou terrivelmente”. Mandaram-no para um sanatório. “Com a ajuda de Deus você recobrará a saúde... A música volverá a interessá-lo e a encher a sua vida”.
Mas Peter é que a havia escrito e, portanto, não podia ser senão uma melodia vinda de Deus.
Quando um homem põe toda a alma num trabalho espera que sejam reconhecidos os seus esforços. ”Não há nela uma única frase que eu não tenha sentido profundamente: todas as suas notas são outros tantos ecos da parte mais sincera da minha natureza”.
À medida que o nosso desespero se torna cada vez mais forte, buscamos fugir à realidade e mergulhamos na ilusão dos sonhos... A pouco e pouco os nossos sonhos senhoreiam-se da alma. A vida de Tchaikovsky era uma alternância de fantasia e realidade, de ventura e angústia. Estados exultantes de espírito quando compunha a sua música, ideias de suicídio quando obrigado a enfrentar o mundo.
Não há de o homem, contudo, enrodilhar-se para sempre aos próprios sofrimentos. Momentos há em que é bom fugirmos de nós mesmos, esquecermos as tristezas passadas e as esperanças futuras, e vogarmos, impessoalmente, fora do tempo e do espaço, sentindo, em vez de emoções definidas, uma sucessão de caprichos arabescos, essas imagens intangíveis que nos perpassam no espírito.
"Se não podes encontrar alegria dentro em ti mesmo, procura-a nos outros”. Vê – vê como ele sabe aproveitar, da melhor maneira possível, seu tempo. Se o prazer não é dado a Tchaikovsky, fuja ele aos sombrios pensamentos e observe como os outros se entregam ao prazer. “Vê como são alegres os demais! E quanta ventura existe em ser-se guiado por sentimentos tão simples”. A gente só pode sobrepujar a tristeza do próprio destino, regozijando-se das alheias alegrias.





Eu, Álison

J. Brahms - Continuação

Via com presteza as próprias deficiências e, com a mesmo presteza, as deficiências alheias.
Ao sair de uma sala numa de suas noites mais sarcásticas, inclinou-se, irônico, e disse: “Se há alguém nesta sala que esqueci de insultar, peço-lhe que me perdoe a inadvertência”. A grosseria, contudo, era nele, como vimos, o reverso apenas do sentimentalismo. A sua música, como o seu temperamento, ocultavam uma alma terna dentro de um corpo de granito.
Brahms era um estudo de contrastes. E desses contrastes o maior, porventura, era o que existia entre o desalinho da aparência e a precisão do espírito. Parecia, exteriormente, levar uma vida desordenada. Interiormente a sua existência era uma unidade perfeita. Reconhecendo com absoluta segurança os verdadeiros valores, extremava-se como uma pessoa negligentemente perfeita em sua arte e perfeitamente negligente em seus hábitos pessoais. Sua preguiça física era unicamente consequência de sua intensa vida mental.
Ele percebia os próprios erros e desvelava-se por corrigi-los. A meticulosidade transformou-se nele numa quase mania.
Um estudo de contraste – triste enigma humano.
Próximo ao coração trazia também o mais estranho dos seus filhos – um sujeito mal humorado, tempestuoso e gigantesco. E havia ainda a encantadora donzela.
A sua saúde de ferro estava fraquejando. Não obstante, baqueou-lhe o corpo sem aviso prévio. Disseram os médicos que sua doença era um câncer, e antes que ele pudesse volver em si da surpresa, tudo se acabou.
“Eu não havia sequer começado a expressar-me”, lastimou-se ele em seu leito de morte. Mas ele, talvez, tenha levado consigo, para um público novo e maior, a música que não deixara escrita.




Eu, Álison

domingo, 22 de julho de 2012

J. Brahms

Os fados escolhem, não raro, incôngruos sítios de nascimento e pais estranhos para o gênio.
A história misteriosa do impulso humano para a expressão divina principiou, no caso de Johannes, em idade precoce. Johannes principiou a estudar piano e foi logo saudado como uma espécie de criança prodígio.
Dir-se-ia que a sua alma delicada viria a sufocar-se naquele ambiente. Ele, porém, desafiou o destino. E depois, improvisamente, no espaço de uns poucos meses, penetrou as regiões do gênio reconhecido.
Joaquim ouviu a música e reconheceu, incontinenti, estar em presença do gênio.
Aquilo era um desafio ao seu gênio.
Clara Schumann era uma mulher nobre, bela e prendada na idade em que as mulheres são mais capazes de influir nas almas de jovens suscetíveis. E Brahms era extremamente suscetível.
E, como se o diabo quisesse meter o bedelho na história, Schumann foi acometido de uma enfermidade nervosa e internado em um hospício, do qual nunca mais saiu vivo. O grande espírito, curvado debaixo do peso do gênio e da decepção, nunca pode, senão em raros intervalos, encontrar o caminho que o fizesse sair do nevoeiro.
“Estou descobrindo um sentido de beleza, não acha?”, perguntou-lhe ele, um belo dia. “Quando a gente vê uma mulher bonita durante muito tempo, uma mulher que é, ao mesmo tempo, graciosa, terna e pura, não pode deixar de sentir-se inspirado diante do espetáculo”.
E o jovem, cheio de tristeza diante das ruínas do que fora, outrora, seu amigo, sentia que lhe passava pela cabeça amarga e tempestuosa torrente de melodia.
Aos olhos do jovem Johannes convertera-se numa deusa, que lhe ensinava, todos os dias, a extasiar-se diante na natureza do verdadeiro amor e que lhe mostrava, a todos os momentos, a beleza da abnegação. Os elementos da sua paixão precipitaram-se num ímpeto vesano.
O Décimo Primeiro Mandamento: Subjulga a tua paixão. “A paixão não é natural na humanidade; é sempre uma exceção, uma excrescência”. “Sê calmo na alegria; sê calmo na aflição”.
Continuaram amigos íntimos e ternos e silenciosos guardiães das suas recordações.
Sê calmo na paixão. Elimina-a! Toda vez que chegava a ponto de perder o coração, adicionava-se uma nova passagem imortal ao rol de suas músicas. Os psicólogos modernos chamarão a isso sublimação. Brahms chamava-lhe a tradução da emoção em canto.
Ele atingira então o domínio completo da sua arte.
E como se quisesse acrescentar um novo símbolo ao seu caráter de eremita, deixou crescer a barba que, com o tempo, se tornou branca e majestosa.
Mesmo enquanto jovem, antes de se lhe confinarem os hábitos de solteirão, demonstrara o mesmo relaxamento no tocante à aparência física.
Raramente, porém, aparecia em publico.
Lá chegando, não encontrava uma cadeira sequer para sentar, pois estavam todas cobertas de livros e folhas de música.
E sonhava sonhos que não haviam sido permitidos a mais ninguém desde o tempo de Beethoven.
Nas fórmulas matemáticas de Bach, librara-se a beleza à espera do filosofo que, libertando-a, lhe permitisse subir aos céus. Os músicos cientistas haviam edificado maciços mausoléus de granito sem janelas, e os músicos poetas tinham construído janelas frágeis de vidro coloridos, mas sem armação sólida que as sustentasse. Foram precisos os filósofos da música, homens como Beethoven e Brahms, a fim de erguer casas para os vivos e não para os mortos – mansões ao mesmo tempo sólidas e cheias de ar, de vitalidade e de imorredoura beleza.




Eu, Álison

sábado, 21 de julho de 2012

C. F. Gounod

Ele não era um mau menino, mas não cuidava das lições. Escrevinhava música em todos os cantos dos livros de latim. Cantarolava trechos de óperas quando o professor procurava explicar um problema de aritmética.
Havia o que quer que fosse de místico na atmosfera romana e isso tocou, dentro dele, uma corda sensível, pois havia também em sua alma profunda tendência para o misticismo.
Além do seu amor à música, adquirira Gounod outra paixão – a paixão da pintura.
“Ainda imaturo, mas possuído de entusiasmo romântico e apaixonado...”.
Desalentado pelo fracasso no teatro, escreveu duas sinfonias e tornou a mergulhar no misticismo.
Havia de ser um tema mundano que tivesse, ao mesmo tempo, fundo religioso – história de paixão e compaixão, poema épico de pecado, sofrimento e redenção, debuxo panorâmico da miséria da Terra, do castigo do Inferno, da glória do céu.
Duas das mais preciosas joias do fulgurante colar dessa música.
E cada manhã, ao despontar do sol, viam os camponeses o estranho misterioso a caminhar pela margem do rio, um homem de meia idade, a barba grisalha, trazendo, nos olhos, uma expressão distante. Voltava sempre dos passeios com ramos de flores nas mãos e grinaldas de música na cabeça.
Sempre que ele tocava para ela, rompia Georgina numa tempestade de lágrimas, chamando-lhe o seu mestre, a sua inspiração, o seu deus.
Esmagado por esse golpe, recolheu-se de novo o compositor ao seu misticismo. E, desta feita, permaneceu místico até o fim.
Antes de morrer, encetou novo trabalho religioso, um Réquiem. Nunca, porém o terminou. Uma tarde, no outono de 1893, ao sentar-se para trabalhar, caiu-lhe a cabeça sobre a mesa. “Psiu”, disse a esposa aos demais membros da família, “não o perturbemos. Ele está dormindo...”.
“A morte”, dissera ele, “é o princípio da vida”.




Eu, Álison

quinta-feira, 19 de julho de 2012

G. Verdi

Essa existência de trabalhos sem folguedos converteu-o num rapaz melancólico, se bem não o tornasse apagado. Desde a mais tenra infância nunca soube o que fosse estar livre de preocupações.
Nessa ocasião, entretanto, Verdi não estava disposto a pensar em música “engraçada”, pois as desventuras tinham principiado a acumular-se-lhe sobre a cabeça.
“Isto”, escreveu Verdi alguns anos depois, “foi apenas o principio das minhas aflições. Em abril (1840) o meu filhinho adoeceu; e antes que os médicos acertassem diagnosticar a enfermidade, morreu nos braços da mãe desconsolada. Como se isto não bastasse, minha filhinha adoeceu também alguns dias depois e, por seu turno, também morreu. E como se isto ainda não fosse suficiente, a minha pobre mulher foi tomada de violenta inflamação do cérebro e, no dia 3 de junho, um terceiro caixão deixou a minha casa... E no meio de todas essas angústias terríveis eu tinha de escrever uma ópera cômica!”.
Em virtude “do castigo dos deuses e da crueldade dos seus semelhantes”, Verdi viu-se tentado, durante algum tempo, a entregar-se ao desespero. “Eu estava só, completamente só!...”.
“Voa, esperança minha, sobre asas de outro”.
“Não creio que o senhor a tivesse escrito se houvesse seguido os ditames do coração. Mas o senhor vive entre pessoas que padecem do hábito de espreitar o que fazem os vizinhos e de condenar toda e qualquer ação que não se lhe ajuste aos padrões de proceder. Tenho por hábito não interferir na vida dos outros, mas espero que os outros não interfiram na minha...”.
Diferiam particularmente nos pontos de vista sobre religião. Giuseppina era católica devota, e Verdi, agnóstico. Ambos, porém, cressem ou não, possuíam a graça divida da tolerância.
Há algumas naturezas virtuosas para as quais a fé em Deus é necessária; outras, igualmente perfeitas, são mais felizes não acreditando em nada.
E Verdi, assim como Giuseppina, compreendiam que a união perfeita consistia na harmoniosa combinação dos dois caracteres opostos. Não, opostos não, suplementares.
“Verdi”, refere Giuseppina à amiga, “virou arquiteto...”.
Não era Verdi um sonhador cujo espírito vogasse acima das realidades da vida.
Verdi foi um desses raríssimos seres humanos – um gênio supremo que conseguiu, em vida, tornar-se um homem extraordinariamente rico.
Surgira-lhe na música uma nota nova – nota de piedade pelos sofrimentos dos seus semelhantes. Abrandara-se a rebelião em tristeza e a dor substituíra a esperança. A vida, quando muito, era patética – um ansiar pelas estrelas e um revolver-se no pó. Todo drama humano, seja qual for o seu curso, há de chegar a um fim trágico.
Aïda é a demonstração prática do credo de Verdi segundo o qual a música não deve apenas acompanhar a par e passo as palavras, senão, penetrando-as, atingir as sutilezas do pensamento que reside atrás delas. O espírito feito carne, a alma da música insuflada no corpo da poesia.
Nunca até então fora o gênio de Verdi desafiado por libretos de técnica tão magistral e tão viva inspiração. E ele se mostrou a altura do desafio. Mantivera-se sempre afastado dos outros – temeroso das suas crueldades e indiferente ao seu aplauso. O mundo deixava-o para trás e atirava-se para frente sem ele.
Assim se despediu Verdi do mundo. “Perdi muitas das pessoas que eu amava, e o pesar resistiu à resignação. Até agora, no entanto, nunca senti tamanho ódio à morte e tanto desprezo pela sua força misteriosa, cega, estúpida, triunfante e infame”.
Um amigo perguntou-lhe certa vez, qual dentre as suas obras julgava a melhor. E foi a seguinte a resposta de Verdi: “Minha melhor obra foi a dotação que fiz a uma casa para músicos pobres, em Milão”.




Eu, Álison

quarta-feira, 18 de julho de 2012

W. R. Wagner

Desde a mais tenra infância, manifestou ilimitada confiança em si mesmo, absoluto desdém aos outros e espantoso talento para a poesia e para a música.
Sem bem fosse, musicalmente, um autodidata, tinha absoluta certeza da sua habilidade em assombrar e conquistar o mundo.
Infelizes são os que o destino liga à roda impetuosa do gênio.
Wagner oferecia beleza ao mundo e esse recompensava-o com desdém.
Carregassem os outros a coroa de espinhos para que eu pudesse receber a recompensa da glória.
Um homem com a sua excitabilidade interior, dizia, necessitava de “assistência mental” – almas irmãs que lhe compreendessem a música e que lhe pudessem inspirar os “mais supremos esforços”. Pode ser que, sob o aspecto artístico, fosse justificável a crueldade dessa atitude. É possível que ele precisasse desse néctar de paixão para alimentar as suas ardentias criadoras.
Música significa para o mundo; frias consolações para as vítimas dessa gloriosa música.
“Sou diferente dos outros homens”, dizia. “O mundo deve dar-me o que preciso”.
A moeda de ouro do meu cérebro em troca do vil metal dos bolsos deles.
Em todas as suas disputas – e estas não lhe faltavam – estava Wagner convencido de que estava absolutamente certo e todos os demais absolutamente errados.
Wagner acreditava – e tinha o direito de acreditar – que viera ao mundo para fabricar músicas sublimes. O sofrimento, a pobreza, as enfermidades – nada conseguia desviá-lo da tarefa que se impusera.
O passo seguinte havia de ser “a música fertilizada pela poesia”. “As palavras só”, asseverava, “não logram expressar a espécie mais alta de poesia. As palavras são as raízes, e a música, a flor”.
À semelhança do que ocorre nos quadros de Leonardo, as personagens humanas de Wagner constituem tão somente parte da intrincada trama natural que ele coloca na tela do seu teatro. Nesse particular seguiram, ao mesmo tempo, Leonardo e Wagner a técnica do Grande Artista Músico, visto que no drama musical do universo a vida do homem representa apenas uma nota.
O espírito de Wagner, no entanto, continuou irrequieto como sempre.
De quando em quando empanavam o brilho dos seus últimos dias a sobrançaria de sua cólera jupiteriana e o trovão de sua controvérsia.
Era uma criatura surpreendente – um homem dotado de tão imenso gênio e de não pequena insânia.
Wagner não pensa, por um minuto sequer, em ninguém, a não ser em si mesmo.
Quando excitado, saiam-lhe as palavras aos gritos; os seus discursos satirizavam ao acaso. Semelhava, nessas ocasiões, alguma força elementar desencadeada... A menor contradiçãozinha provocava nele fúria incrível.
Aproximavam-se dele, um por um, depositavam os corações diante do relicário do seu gênio e depois se afastavam, silenciosos. Nos últimos dias de sua vida ele se viu praticamente só.
Mas quando caiu morto, uma personalidade única deixou o mundo – uma criança travessa que aprendera a conversar com os deuses.




Eu, Álison

terça-feira, 17 de julho de 2012

F. Liszt

Era um corpinho enfermiço, etéreo e apaixonado, que se diria delicado demais para uma criança mortal.
Quando os Liszt chegaram à capital da Áustria (em 1821), Franz contava apenas dez anos de idade, embora já tocasse com a técnica e emoção de um virtuoso adulto.
“Você deve agradecer à sua estrela”. “Nunca vi, em toda a minha vida, talento igual para a memorização”.
Ele senta ao piano. Entreolharam-se, pasmados, os membros da orquestra. “Mas esse menino é tão bom quanto Mozart!”.
Foi para todos uma grande surpresa encontrar Beethoven lá, pois, ao receber o ingresso para o concerto, lançara-o de si, resmoneando: “Estou farto de crianças prodígio”. Todavia, lá estava ele, imóvel na sua cadeira, os lábios muito apertados. Claro está que não lhe era possível ouvir uma única nota, pois já a esse tempo a sua surdez era praticamente completa. Não obstante, continuou a fitar os olhos na criança, impassível, o cenho carregado, distante como um deus. Terminado o concerto, abeirou-se da plataforma, tomou Franz entre os braços de urso e disse-lhe, beijando-o a testa: “Meu filho, você ainda será, um dia, um verdadeiro músico”. Esse elogio de Beethoven foi uma das mais queridas recordações da infância.
Que dedos quentes e palpitantes, que olhos ardentes e perturbadores! Já em sua infância sentia Franz que, depois da sua música, o sorriso de uma mulher bonita era a coisa mais irresistível do mundo.
Conseguiu, entretanto, tornar-se aluno de Paer e continuou, debaixo da orientação deste último, o meteórico progresso em direção ao pináculo do virtuosismo contemporâneo.
No momento, contudo, em que as suas mãos roçaram o piano, transformou-se. Já não era uma criança que tocava, mas a própria encarnação do Espírito da Música.
Nunca foi criança alguma dotada de tamanho gênio. Nunca houve criança alguma tão sequiosa por brincar.
Tentativas de suicídio. Tensões de ordenar-se. Leitura de livros amargos de Byron e Voltaire. Uma longa e crítica enfermidade. Depois, emergiu Liszt como o favorito fascinador, brilhante, temerário, cínico e irresistível dos salões franceses.
O homem mais elegante de Paris, e o maior pianista do mundo, foi pintado, modelado e elogiado pelos principais artistas, escultores e poetas.
A orquídea de seu gênio crescia ao influxo dos aplausos. Orquídea de deslumbrante beleza como raramente havia visto o mundo. O seu virtuosismo artístico e mental seduzia não só as mulheres mais encantadoras senão também os homens mais brilhantes de Paris. Era um jovem deus irrequieto esse músico sempre em busca de novos triunfos, esse amante sempre à cata de novas aventuras.
Ocorreu, por fim, uma aventura que lhe trouxe uma taça de vinho de múltiplos sabores – excitamento, romance, paixão, alegria, desilusão e sofrimento. Mas não lhe trouxe a paz. Porque não pertencia ao tempestuoso temperamento de Franz Liszt experimentar jamais as bênçãos da paz.
Heine asseverara-lhe que tal conquista seria impossível, visto que ela trazia encerrado o coração em diversas polegadas de gelo.
Não lhe sobrava tempo, entretanto, para os sonhos maiores da sua imaginação, pois gastava-o todo com Wagner, o obscuro titã cujas visões pairavam acima da compreensão das massas.
Havia agora em sua execução uma nota nova – a nota do sofrimento, do desafio, da rebelião contra as pompas vãs do mundo.
Ele era apenas um estorvo para os netos, para a filha, para si mesmo. Nada mais lhe restava senão esperar pacientemente pela morte. Era tarde demais. Morria. Mas as contas afinal, não estavam tão más assim. Porque, ao cerrarem-se-lhe os olhos, Cósima apertava a mão entre as dela.





Eu, Álison

segunda-feira, 16 de julho de 2012

R. Schumann

Um duplo talento despertara nele prematuramente – um dom para a literatura e um dom para a música.
Surpreendera o olhar da amada num arco-íris lunar e imaginou ouvir-lhe o riso da brisa ao dançar sobre um lago perdido entre as montanhas. "Nesse momento aprendi a ideia sublime da Divindade".
Robert voltava-se amiudadas vezes para o teclado quando sentimentos profundos demais para lágrimas – e palavras – se lhe agitavam no cérebro.
Era sujeito a intensos acessos de melancolia. Escreveu à mãe, referindo-lhe as suas desventuras, num estilo calculado para apertar-lhe o coração. “Se eu, ao menos, tivesse aqui alguém que me compreendesse direito e com simpatia e que tudo fizesse por mim em virtude de um amor puro e desinteressado que me dedicasse!”.
“Emociono-me com demasiada facilidade”, queixava-se ele.
“Nem posso matar-me, a despeito do meu desespero, porque me falta o dinheiro suficiente para adquirir uma pistola”.
Eram os seus dias uma série de estados de espírito que flutuavam violentamente entre o êxtase e o desespero.
Além disso, repartira o tempo entre a música e a poesia. Expressava-se igualmente bem com o piano e com a pena, o que, aliás, representava para ele, de certa maneira, uma fonte de fraqueza. “Se ao menos o meu talento para a poesia e para a música se concentrasse num ponto único, a luz não se ofuscaria tanto assim...”.
Na amizade do gênio o prato da familiaridade é condimentado com o sal do respeito.
“Sentimentos estranhos agitavam-me o coração...”. “Permiti que essa noite, ao menos, se passe sem que eu perca a razão!”
Nessa altura, Schumann desfaleceu. Durante toda a vida obcecara-o a ideia de que estava perdendo a razão. Referia-se ao “lado obscuro” da sua vida, manifestava o desejo de divulgar, algum dia, o segredo de uma “grave enfermidade psíquica” de que padecera. Um dia, ele teria a “chave” de todas as suas ações, “de toda a minha estranha natureza”.
“Poderá o jovem Schumann edificar uma catedral de ideias musicais?”.
Essa infâmia abateu a natureza sensitiva de Schumann.
Schumann não era homem com quem se lidasse facilmente. Era distraído, sem cerimonioso, arrebatado, irresoluto e caprichoso com o vento. Inclinado à melancolia, acreditava que o casamento o curaria dos seus periódicos acessos de tristeza.
Referia-se, repetidamente, à sua boa fortuna de possuir “uma esposa à qual estou ligado pela arte, pela afinidade mental, pelo hábito de muitos anos de amizade e pelo mais profundo e mais sagrado amor...”.
O meu respeito pelo gênio de Robert, pela sua inteligência e pelos seus dons de compositor aumenta com cada uma de suas obras.
Padecia, continuamente, de acessos de melancolia e fazia viagens frequentes ao campo para tratar da saúde. Com os nervos tensos e a ponto de arrebentar, tinha medo da morte e tinha medo da vida.
Para Schumann, porém, valia o oferecimento como escápula temporária às algemas do desespero.
Era um homem de poderosas emoções e dificuldade de expressão. “Quando os meus pensamentos são mais eloquentes”, lamentava-se, “é quando me vejo mais incapacitado de falar”.
Excesso de gênio, carência de talento. Tal era o paradoxo daquele homem, que padecia da excitabilidade nervosa provocada por um cérebro demasiado fértil. Essa excitabilidade nervosa trouxe-lhe, de um lado, o fardo das aflições e, de outro, o condão de cantar.
Pouco depois, decompunham-se as notas num milhar de sons majestosos. Que maravilha! Brilhavam-lhe nos olhos visões do paraíso. “Sofro maravilhosamente”.
Uma bela manhã, saltou da cama dizendo que os anjos lhe estavam cantando um tema que ele precisava copiar. Saiu depois impetuosamente de casa e precipitou-se no Reno. Foi salvo e mandado para um hospício.
Tal foi a tragédia de seu espírito. O artista hipersensitivo vivera uma vida de frustração mental. Não poderia ser feliz o final dessa historia de um gênio tão poderoso com tão limitadas oportunidades de expressão, vulcão ativo de música peado pelas cinzas de um mundo desatento. Havia, forçosamente, de explodir.
Durante dois anos arrastou-se ele no meio dessa morte viva. Vivia num mundo de música divina – aquelas harmonias celestiais que lhe roubavam o repouso.
A luz do sol é apenas uma lembrança irrisória na treva da tormenta.
No instante, porém, em que ela se ergueu, ele a beijou. O beijo instintivo, confiante e indefeso de uma criancinha.





Eu, Álison

sábado, 14 de julho de 2012

F. F. Chopin

Era uma "criança aluada, pálida e sentimental", dotada de um instinto musical quase tão agudo quanto o de Mozart e uma predisposição para perturbações pulmonares, indício de morte prematura.
A sua pessoa, como sua música, era um poema elegante, o que representava para ele fonte de grandes satisfações.
A palavra tristeza é, porventura, pesada demais para se aplicar a um rapaz de vinte anos. A tristeza, no entanto, era o talismã a que ele se apegava, desesperado, para subtrair-se às angústias do seu contentamento. Cria fervorosamente na melancolia, aquele feixe de nervos superexcitados e cansados, aquela ruína tuberculosa e maltratada de vinte anos.
A consciência o torturava. O momento era de nervosismo nacional. O povo se esquecera das humanidades, das artes, das ciências, da paz contemplativa e criadora.
Mas nos dias angustiosos, como Dante o observou, não há sofrimento tão amargo quanto a memória das passadas alegrias.
“Aqui estou eu com as mãos vazias, deitando o meu desespero em notas tinintes”.
Volvido algum tempo, abrandou-se-lhe a extrema aflição mental.
No meio dessa sociedade de magníficos sonhadores, artistas que tinham a audácia de olhar para um mundo melhor, caminhava o polonês enfermiço e triste. Sentava-se ao piano e arrebatava-os, a todos, com a sua poesia. Tinha vinte e poucos anos e sentia que ainda lhe faltava muita coisa para aprender no respeitante à sua arte.
Entre os primeiros a reconhecer o gênio de Chopin figura Franz Liszt, o maior pianista do seu tempo. Liszt achava-se presente a um concerto dado a pelo recém chegado a Paris, e, ao lado dele, sentara-se aquele outro músico mágico, Felix Mendelssohn. Quando Chopin principiou a tocar, ambos compreenderam que era Deus quem falava pelos dedos do rapaz.
Diversamente de Liszt, Chopin tinha qualquer coisa de recluso. Aristocrático por instinto, desadorava a humanidade quando representada pelas massas. Temia as multidões.
“Enchia a sombra de um conclave de fadas”.
Instalou-se em luxuoso apartamento e, na sua soledade, aspirava o perfume das violetas.
Para compensar, contudo, a sobriedade obrigatória da existência física, enriquecia sua música com uma incomparável embriaguez psíquica. Com menos de trinta anos, escrevendo exclusivamente para piano, cuspindo sangue dos pulmões devastados, era adorado pela sua música.
E quem poderá escrever música forte quando tem o coração fraco?
“Se me tivesse compreendido, talvez me pudesse ter amado”.
Um dizia que eu havia de morrer, o segundo, que eu estava prestes a morrer, o terceiro, que eu já estava morto.
Embora lhe declinassem rapidamente as energias, a poderosa labareda do gênio senhoreou-se dele e imprimiu-lhe verdadeira fúria criadora. Sentava-se ao piano e embrenhava-se na música. “Ele não sabe sequer em que planeta vive”. Chopin, sepultado na própria música, não atentava em coisa alguma.
Amigos instaram-lhe que escrevesse óperas e sinfonias a fim de “demonstrar o seu talento a um mundo que não se fiava dele”. Ele, porém, encolhia os ombros, a sorrir. “Quem quer que pudesse ler-lhe o rosto veria quão amiúde possuía a convicção de que entre todos os senhores bem vestidos e entre todas as senhoras perfumadas que lhe frequentavam os concertos, não havia uma única pessoa que compreendesse verdadeiramente o seu propósito”.
Sentado em sua cela, Chopin conversava com o seu piano e contemplava o declinar da própria vida.
Cada um de seus dedos “era uma voz delicadamente diferenciada”. Ele sentava-se ao piano e convertia-o em vida.
Não tema os pesares da tristeza. A sua vida dissolvia-se em música.
As luzes estavam apagadas. Chopin arpejava. Tinha lágrimas nos olhos. As notas semelhavam as vergastadas de uma tempestade de neve açoitando o quarto. “Sonhei que você estava morta”.
Despertara o monstro oculto no piano e este lhe atirava setas de melancolia ao coração.
Espalhados em vasos por todos os cantos havia ramos de violetas – suas flores prediletas. Um perfume leve. Música perfumada. Canções crepusculares de fragrante tristeza.
A sua música delicada estremecia ainda como uma chama tocada pelo vento. Música estranha e melancólica, em tons menores, canções do vento e das estrelas e dos mistérios da noite.
Um dia, após o pôr do sol. As suas almas, como a de Chopin, afinar-se-iam com a música da noite. Porque a noite é apenas um prelúdio para outro dia.
“Quando eu tiver ido embora”, - foram estas as suas últimas palavras – “toquem um pouco de música para mim, pois sei que hei de ouvi-los no além”.




Eu, Álison

sexta-feira, 13 de julho de 2012

F. Mendelssohn

Que estranho fenômeno, esse jovem compositor-regente – pouco maior, no físico, que uma criança, e no talento, pouco menor que um deus!
Mas se Mendelssohn era o observado de todos, era também o observador de tudo. Sentado ao piano, não se lhe atarefavam menos os olhos do que os dedos.
A magia dos panoramas escoceses não só lhe despertou a fantasia musical senão ainda a poética: “Quando o próprio Deus se mete a pintar panoramas”, escreveu numa carta da Escócia, “faz quadros estranhamente belos”.
“Ele era sinceramente dedicado aos amigos. Era, de feito, uma felicidade ser amado de Felix”. E amá-lo.
Ele possuía, felizmente, senso de humor, uma habilidade de compreender a pequenez do homem dentro da grandeza do universo. Habituara-se a olhar o mundo sob um prisma filosófico.
Diante dos túmulos de Beethoven e Schubert, em Viena, ponderou: “A sepultura é o fim de todos os esforços. Há-de o gênio renunciar em prol do mundo os seus trabalhos e arrastar-se depois para um canto a fim de morrer”.
A maior parte dos seus pensamentos, no entanto, estavam muito distantes da morte, pois uma perpétua canção de primavera borbulhava na alegria do seu coração.
Apaixonava-se incessantemente: contudo, diversamente de Liszt, jamais roubou a outros o seu amor.
“Não se passa um dia sem que ele produza pelo menos alguns pensamentos que deviam ser incontinenti gravados em ouro”.
Cecília não era excepcionalmente brilhante, nem excepcionalmente prendada. Era, todavia, excepcionalmente bela e tão delicada quanto bela. “A sua disposição serena a alegre”, escreveu ele, “é como uma bebida fria para meu espírito inquieto”. Esta menina, com seus lindos olhos e a sua tranquila disposição, há-de, muito provavelmente, curar-lhe de todos os acessos de irritabilidade.
Delegações, discursos, serenatas – glórias amontoando-se sobre glórias, torturas sucedendo-se a torturas. O preço de um êxito demasiadamente grande. A maçã envenenada da fama excessiva. O esforço comprometeu-lhe irremediavelmente a saúde.
Duas criaturas encantadas, pasmadas diante do milagre do desabrochar das flores humanas. Não tardou muito o dia, porém, em que Mendelssohn devia quedar-se igualmente pasmado diante do milagre do colher das flores humanas. Milagre e mistério amargo.
O mestre levantou subitamente a cabeça e atirou-a para trás num gesto que bem conheciam os presentes. Fora chamado o maestro para dirigir, no além, o seu primeiro concerto.




Eu, Álison

quinta-feira, 12 de julho de 2012

F. Schubert

Franz Schubert era um rapazinho tímido e obscuro que passava no quarto todas as horas de ócio, escondido e silencioso.
Raramente se utilizava do piano para compor, pois dizia que o instrumento lhe interrompia a corrente de ideias. Batia, de quando em quando, os dedos sobre a mesa, como se experimentasse uma passagem musical. Escrevia com facilidade e rapidez e fazia poucas correções. Um punhado de colegas, os mais íntimos, lia-lhe as composições. Era a música o seu melhor meio de comunicação com eles, pois não raro se atrapalhava com as palavras. Quando os alunos saiam para o passeio diário, apartava-se Schubert dos outros, e caminhava com a cabeça inclinada para a frente, as mãos nas costas e os dedos a se mexerem constantemente, como se percutissem um teclado. Muito móvel, a sua fisionomia expressava uma série de estados de espírito.
Posto que raro se risse, possuía, em grande dose, um tranquilo bom humor.
Tolhia-o, no entanto, a timidez para que pudesse expressar com palavras o seu amor.
“É estranho”, escreveu ele em seu diário, “que certas pessoas procurem retratar seus sentimentos em linguagem simples e comovente, apenas para se converterem em objeto de riso alheio. O falar com facilidade é um dom da natureza”. Falecia-lhe esse dom.
Os deuses, porém, são irônicos. Infeliz no amor, era Schubert, no entanto, feliz na amizade. Os seus amigos, como ele, gostavam de música e de arte.
Era um arranjo musical para um dos mais comoventes poemas de Goethe, o Erl-King. Um pai, no dorso de um cavalo, leva o filhinho consigo, através da noite e do vento. A criança está aterrorizada.  “Olhe, papai, olhe, o Erl-King. Veja onde ele está!”. O pai não enxerga coisa alguma. “É a neblina e a chuva, meu bem”. Mas a voz do Erl-King sussurra sedutoramente aos ouvidos da criança. “Venha comigo para minha casa, meu lindo menino... Lá poderá apanhar flores e vestir as roupas mais bonitas... E terá uma porção de brinquedos lindos para brincar”. “Papai, papai, você não ouve o que ele está cantando?”. “Ora, ora, meu benzinho. Não tenha medo. São apenas as folhas tocadas pelo vento”. “Venha, menininho lindo, venha para o mais profundo... Minhas donzelas o embalarão e cantarão para você dormir”. A pouco e pouco, tornou-se mais ameaçadora a voz.  “Venha, venha, agora, eu o farei sentar em cima do meu cavalo... Se não quiser vir por bem, eu o levarei a força!”. “Papai, papaizinho, ele não me quer largar. O Erl-King está me machucando, está me machucando – tanto!”. O pai estremece e dirige-se, desesperado, para casa. Mas quando chega, possuído de angústia e de pavor, jaz a criança tranquila entre seus braços... Morta.
Dou ao mundo o que trago no coração.
Uma das grandes ironias na vida de Schubert foi não haver ele jamais compreendido totalmente onde jazia a força do seu verdadeiro gênio. O ser o autor das canções mais puras do mundo deixava-o indiferente.
Colhera-a como uma flor no jardim exuberante do seu gênio e atirara-a, negligente, a um mundo desatento.
A sua impaciência para com os padrões do mundo aumentava cada vez mais.
Schubert, porém, mimado pela enfermidade e pelas decepções contínuas, assumira uma atitude áspera que afastava o público.
“Vocês se julgam artistas”, continuou Franz. “Mas não passam de tocadores de flauta e de rabeca. Eu sou um artista – eu, Franz Schubert. Escrevi coisas grandes e nobres, as mais belas sinfonias, cantatas, óperas e quartetos. Os outros, no entanto, chamam-me cantor de ninharias, e a vocês, artistas – vermes rastejantes e roedores, que eu teria nojo até de calçar aos pés. Porque, ao passo que vocês se enrolam e apodrecem no pó, eu aprendi a caminhar entre as estrelas!”.
Schubert continuou o seu sonho solitário entre as estrelas.
Ao terminar, as lágrimas orvalhavam-lhe os olhos. “Eu não sabia que era tão bonita”, disse.
“Nas horas escuras e santificadas dos seus últimos dias ele escreveu as canções mais tristemente belas”. Quedaram-se os amigos espantados diante da mórbida melodia dessas canções de inverno.
Mal sabia ele que brindava a si mesmo.




Eu, Álison

quarta-feira, 11 de julho de 2012

L. V. Beethoven - Continuação

Não me é dado encontrar recreação na sociedade dos homens, numa conversação requintada, na recíproca permuta de ideias e sentimentos... Devo viver como exilado. Mais um pouco, e eu teria dado cabo da minha vida.
Logo, porém, desistiu da ideia da morte. Ele tinha algo por que viver – a sua arte. “A arte apenas me susteve... Esvaziei a taça de amargo sofrimento... Este se transformará em beleza dentro da minha alma...”.
“Em memória de um grande homem” – um homem cujo corpo ainda vivia, mas cuja alma já morrera.
O cinismo de Beethoven aumentou com os anos. Para muitos dos seus contemporâneos ele não era um gênio, senão um excêntrico. Mostrava-se rabugento diante dos amigos, arremessava livros contra os criados e insultava os benfeitores. “O que sois, vós o deveis ao acaso e ao nascimento. O que sou, devo-o a mim mesmo. Já ouve e haverá ainda milhares de príncipes. No entanto, existe apenas um só Beethoven”.
Mas era a impetuosidade e o fogo de um vulcão, das grandes forças da própria Natureza, pois havia nele um Titã. Sem embargo, essa fúria exterior ocultava um coração delicado.
As suas amizades, entretanto, representavam mero incidente em sua vida. Era a música a única paixão que o possuía. A criação na soledade. “Vivo só, mas não me aflijo por isso, pois sei que Deus esta mais perto de mim que dos outros”.
E, em todos os casos, música de cunho único, original e divino, forjada no metal puro da fantasia de Beethoven. A música de Beethoven interpretando as ideias de Deus.
A história da luta do Homem contra o Destino e da vitória do Homem guiado pelo céu. É o poema épico da peregrinação do Homem do Sofrimento para a sabedoria, da sabedoria para a coragem, da coragem para a esperança e desta para a vida eterna.
Um dos grandes acontecimentos na vida de Beethoven foi o seu encontro com Goethe. Foi aí que o poeta dos sons veio a conhecer o poeta das palavras. “É a joia mais preciosa da nossa terra”. Davam, todavia, longos passeios, cada qual absorto nas próprias ideias – dois artistas supremos a traduzir o mistério do mundo em linguagens diversas.
É uma diferença de princípios, profundo desencontro no que concerne aos valores reais da vida. Para Goethe, a realeza era mais importante que o gênio. Para Beethoven, o gênio era mais importante que a realeza.
A surdez não foi um acidente nem uma tragédia. Foi o amanho do solo para o florejar do gênio.
Jazia Beethoven em seu leito de morte. Estava, naquele momento, inconsciente. Fora rugia terrífica tempestade. De repente, o fuzilar de um relâmpago. Depois, tornou a cair para trás, morto.






Eu, Álison

terça-feira, 10 de julho de 2012

L. V. Beethoven

Bach foi o matemático da música; Mozart, o poeta; Beethoven, o filósofo. No jardim do espírito humano é a semente da filosofia a única que floresce.
Não lhe era fácil tarefa atender aos mínimos pormenores do governo da casa, pois grandes pensamentos principiavam a agitar-se dentro dele. Aborrecido com o destino e preocupado com a saúde, tornou-se amargo, sarcástico, mal humorado.
Possuíam-no acessos violentíssimos de raiva e acometimentos igualmente violentos de remorsos.
Possuía especial habilidade em fazer amigos a despeito do gênio fogoso e da língua mordaz. Os outros admiravam-lhe o espírito puro, indômito e rebelde, o absoluto desprezo das delicadezas excessivas diante das realidades da vida. A figura atlética, atarracada e rude e o espírito teimoso, positivo e incapaz de transigências exerciam poderosa fascinação. “Ainda bem”, disse um amigo depois da visita de Beethoven à corte, “que você conhece a etiqueta apropriada em presença da nobreza”. Ao que Beethoven replicou: “Pois você devia dizer: ainda bem que a nobreza conhece a etiqueta em presença do gênio”.
“A felicidade”, dizia ele “não foi feita para mim; ou melhor, eu não fui feito para a felicidade”. O seu gênio precisava de solidão para desenvolver-se. Solidão e sofrimento. “Não vim ao mundo para levar uma vida agradável, mas para realizar uma grande obra”. Retirou-se da sociedade e tornou à casca de eremita da sua rebeldia e da sua rudeza.
O temperamento de Beethoven era explosivo, arrogante – e triste. Quem sente intensamente, sofre intensamente. Um instrumento afinado com a beleza é sensível à dor. A mesma sensibilidade nervosa que lhe proporcionava o gênio proporcionava-lhe também a infelicidade.
Beethoven aspirava a realizar-se a si próprio. Ouvir-lhe-iam a música e quedariam maravilhados diante do novo gigante criativo que assomava ao horizonte.
“Acreditarão, acaso, que posso pensar em um miserável violino quando converso com o espírito?”
De conforme com seu temperamento ardente, Beethoven estava sempre se apaixonando por esta ou aquela mulher. Beethoven, certo, não era o tipo de homem destinado a conquistar o coração feminino.
Surdez e romance nunca se deram muito bem. As palavras ternas de afeto hão de ser murmuradas, e não pronunciadas aos gritos. As mulheres que rodeavam Beethoven admiravam-no, compadeciam-se dele, chegavam, às vezes, a adorá-lo; nunca, porém, o amaram.
E essas senhoras ansiavam por ouvir e aplaudir Beethoven, embora não ansiassem a flertar com ele. Não se flerta com um deus.




Eu, Álison

quarta-feira, 4 de julho de 2012

F. J. Haydn

Havia, aliás, grande necessidade de senso de humor no lar dos Haydn, batido da pobreza, pois a tristeza e a morte eram visitantes frequentes naquela choça camponesa de um andar em Rohrau, na Áustria.
A natureza, em seus displicentes experimentos, quebra muitos pedacinhos de barro para produzir uma obra prima.
E Haydn viveu sozinho os seus últimos dias. Perdera o amor, mas encontrara a paz.
Compunha música que era como o cantar dos anjos em seus momentos jocosos.
Movimento pontuado dos "tristes suspiros e lamentos dos mortais presos ao seu destino"
Eis-me aqui de novo na solidão.
O coração continuava, incessante, a cantar-lhe, e a sua música brilhava como raio de sol bailarino refletido por um espelho que algum garoto travesso manejasse.
Eu desejaria apenas poder infundir a todos os meus amigos, principalmente aos críticos, a mesma intensa simpatia e profunda admiração que sinto pela música inimitável de Mozart... As nações deviam disputar-se mutuamente a posse de tamanha joia, afim de conservá-la dentro em suas fronteiras.
Principia com um bosquejo do caos - pandemônio de frases discordantes e incompletas, de estrondosas dissonâncias, de incerteza e suspensão. Logo - súbita e harmoniosa mistura de todos os instrumentos e vozes a anunciar o nascimento do universo: "E foi feita a luz".
Três semanas depois, expirava. "Esta guerra miserável", disse em seu leito de morte, "acabou comigo".





Eu, Álison