Raramente se utilizava do piano para compor, pois dizia que
o instrumento lhe interrompia a corrente de ideias. Batia, de quando em quando,
os dedos sobre a mesa, como se experimentasse uma passagem musical. Escrevia
com facilidade e rapidez e fazia poucas correções. Um punhado de colegas, os
mais íntimos, lia-lhe as composições. Era a música o seu melhor meio de
comunicação com eles, pois não raro se atrapalhava com as palavras. Quando os
alunos saiam para o passeio diário, apartava-se Schubert dos outros, e
caminhava com a cabeça inclinada para a frente, as mãos nas costas e os dedos a
se mexerem constantemente, como se percutissem um teclado. Muito móvel, a sua
fisionomia expressava uma série de estados de espírito.
Posto que raro se risse, possuía, em grande dose, um
tranquilo bom humor.
Tolhia-o, no entanto, a timidez para que pudesse expressar
com palavras o seu amor.
“É estranho”, escreveu ele em seu diário, “que certas
pessoas procurem retratar seus sentimentos em linguagem simples e comovente,
apenas para se converterem em objeto de riso alheio. O falar com facilidade é um
dom da natureza”. Falecia-lhe esse dom.
Os deuses, porém, são irônicos. Infeliz no amor, era Schubert, no entanto, feliz na amizade.
Os seus amigos, como ele, gostavam de música e de arte.
Era um arranjo musical para um dos mais comoventes poemas de
Goethe, o Erl-King. Um pai, no dorso de um cavalo, leva o filhinho consigo, através
da noite e do vento. A criança está aterrorizada. “Olhe, papai, olhe, o Erl-King. Veja onde ele
está!”. O pai não enxerga coisa alguma. “É a neblina e a chuva, meu bem”. Mas a
voz do Erl-King sussurra sedutoramente aos ouvidos da criança. “Venha comigo
para minha casa, meu lindo menino... Lá poderá apanhar flores e vestir as
roupas mais bonitas... E terá uma porção de brinquedos lindos para brincar”. “Papai,
papai, você não ouve o que ele está cantando?”. “Ora, ora, meu benzinho. Não tenha
medo. São apenas as folhas tocadas pelo vento”. “Venha, menininho lindo, venha
para o mais profundo... Minhas donzelas o embalarão e cantarão para você dormir”.
A pouco e pouco, tornou-se mais ameaçadora a voz. “Venha, venha, agora, eu o farei sentar em
cima do meu cavalo... Se não quiser vir por bem, eu o levarei a força!”. “Papai,
papaizinho, ele não me quer largar. O Erl-King está me machucando, está me
machucando – tanto!”. O pai estremece e dirige-se, desesperado, para casa. Mas
quando chega, possuído de angústia e de pavor, jaz a criança tranquila entre
seus braços... Morta.
Dou ao mundo o que trago no coração.
Uma das grandes ironias na vida de Schubert foi não haver
ele jamais compreendido totalmente onde jazia a força do seu verdadeiro gênio.
O ser o autor das canções mais puras do mundo deixava-o indiferente.
Colhera-a como uma flor no jardim exuberante do seu gênio e
atirara-a, negligente, a um mundo desatento.
A sua impaciência para com os padrões do mundo aumentava
cada vez mais.
Schubert, porém, mimado pela enfermidade e pelas decepções
contínuas, assumira uma atitude áspera que afastava o público.
“Vocês se julgam artistas”, continuou Franz. “Mas não passam
de tocadores de flauta e de rabeca. Eu sou um artista – eu, Franz Schubert.
Escrevi coisas grandes e nobres, as mais belas sinfonias, cantatas, óperas e
quartetos. Os outros, no entanto, chamam-me cantor de ninharias, e a vocês, artistas
– vermes rastejantes e roedores, que eu teria nojo até de calçar aos pés.
Porque, ao passo que vocês se enrolam e apodrecem no pó, eu aprendi a caminhar
entre as estrelas!”.
Schubert continuou o seu sonho solitário entre as estrelas.
Ao terminar, as lágrimas orvalhavam-lhe os olhos. “Eu não sabia
que era tão bonita”, disse.
“Nas horas escuras e santificadas dos seus últimos dias ele
escreveu as canções mais tristemente belas”. Quedaram-se os amigos espantados
diante da mórbida melodia dessas canções de inverno.
Mal sabia ele que brindava a si mesmo.
Eu, Álison
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