terça-feira, 31 de julho de 2012

I. Stravinsky

Stravinsky não é apenas um grande compositor. É também o protagonista de um produto fantástico, um novo tipo de música amusical, uma rebelde, surpreendente e, por consequência, sedutora harmonia de discórdias.
Murmurava-se que ele era um deus pagão redivivo, que descera das alturas do Olimpo para dançar diante dos homens. A Rússia prostou-se-lhe aos pés para adorá-lo. As mulheres entravam em transes a sua aproximação.
Lograria Stravinsky escrever uma música suficientemente horripilante? Ele assumira os encargos de um doutor feiticeiro dos sons.
Engana-se quem espera que a música deva expressar alguma coisa. A música, verdadeiramente, não deve evocar sentimento nenhum. “Toda emoção é uma ilusão. A única propriedade da música é a sua estrutura intelectual. A música há de ser admirada e não gozada”. Sem embargo, seduzia as paixões primitivas do gênero humano.
As qualidades emocionais que faziam rebolar as cadeiras não o interessavam, pois decidira, inexoravelmente, que a música há de ser intelectual e não emocional. Compreender as paixões alheias? Sim. Mas sucumbir a elas? Positivamente não. A curiosidade desse homem era insaciável. Não o comovia de maneira alguma a beleza voluptuosa da musa. Preocupava-se muito mais em estudar-lhe as vértebras da espinha. Não era um poeta da emoção tonal, mas um cientista do colorido tonal.
O espírito americano, inventivo, deixa-se fascinar pela novidade na arte assim como na ciência. E Stravinsky é sempre novo, sempre experimental, sempre único. Sempre se poderá esperar dele o inesperado.
A sua música, como as suas palavras, podiam, por conseguinte, dar-se ao luxo de não ter sentido – um ritual arcaico para uma religião fora de moda, que teria a pomposa dignidade e a sagrada frigidez de uma consagração religiosa a um deus morto. E este homem odiava de tal forma o sentimentalismo que nos faz desconfiar que era, no íntimo, extremamente sentimental. Foi assim que surgiu o oratório, tentativa irracional de recapturar o racionalismo dos antigos pagãos. Não capturou, contudo, nada de sua beleza, mas tão somente a sua frieza de mármore.
Stravinsky está se tornando cada vez menos poeta e cada vez mais professor, sacrificando a arte à excentricidade, o coração ao espírito. A maior das músicas, acredita ele, há de seduzir o espírito e não o coração.
A atitude desses outros, todavia, não o fará desviar-se do seu caminho. Não cederá diante dos “que, em sua cegueira, não compreendem que estão pedindo que eu retroceda”.
Em outros tempos tivera ele uma visão acerca de uma boneca em uma feira. Dotada subitamente de vida, a boneca dançou durante algum tempo, compreendeu as alegrias e as tristezas da vida, e depois morreu como qualquer criatura humana. A música de Stravinsky a propósito dessa boneca era colorida, irônica e sobrecarregada de emoção. Patrushka, a boneca que sofria como um ser humano. A boneca mecânica vivera uns poucos momentos elétricos diante do aparato cintilante de um bazar, dançara e amara com intensa paixão e logo – que ironia! – morrera de um excesso de sentimento humano. Assim também a musa de Stravinsky, mecânica por natureza, tivera por uns poucos momentos um coração e derramara a música do sentimento humano. O coração, porém, morrera logo depois sufocado pelo excesso da própria emoção. E hoje, a musa de Stravinsky é, de novo, uma inteligente boneca mecânica sem coração.





Eu, Álison

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