Sempre hesitei em falar sobre o Amor porque acho um assunto muito complicado, mas achei esse texto, que foi retirado da edição n° 76 da revista Filosofia, Ciência e Vida. Achei interessante porque ela mostra uma visão diferente do que se considera Amor, bem próximo do que eu acredito ser o correto. O título é "Amor e relacionamento versus Felicidade".
Estar solteiro nunca foi um fato social bem aceito. E na modernidade, são cada vez mais constantes as queixas sobre a solidão. Mas estar só não seria uma opção viável e saudável? Para Schopenhauer, a autossuficiência é condição essencial para uma vida feliz.
Tema de grande repercussão social na atualidade, os relacionamentos mostram-se cada vez mais complexos por fugirem de um modelo outrora descrito. Acompanhado da fragilidade pós moderna em todos os âmbitos da sociedade, os relacionamentos são mais uma questão a trazer angustia para indivíduos esvaziados e que vão buscar em um parceiro um alento para satisfazer suas frustrações. Mas que não sabem mais como se relacionar. As discussões desse artigo se baseiam nas ideias de Arthur Schopenhauer, que diz que a felicidade vem de uma forma de vida autossuficiente e de André Comte-Sponville, que diz que mesmo o amor a dois deve ser solitário. Então, será que estar sozinho não pode ser uma questão de opção, uma escolha? Não existe um meio termo entre um relacionamento ortodoxo e um estilo de vida hedonista conhecido como “vida de solteiro?”.
Não estar acompanhado de um parceiro parece estranho aos olhos da sociedade. Isso pode se dever ao fato de inúmeros exemplos em nosso cotidiano, seja no cinema, em letras de músicas, no senso comum ou nas obras de autoajuda, em que proliferam abordagens simplórias sobre o amor e que alimentam ainda mais as frustrações dos relacionamentos por oferecer visões distorcidas e incentivar um relacionamento romântico e raso sobre o tema.
Algumas obras do cinema podem nos servir de exemplos. Em Amor a Toda Prova, parece ao espectador atento que o ser humano tem apensa duas opções: achar um amor verdadeiro, um parceiro ideal, e se entregar a um relacionamento tão comprometido quanto sério, ou viver na “farra”, dentro daquela rotina vulgarmente absorvida na pós modernidade, normal para a existência de solteiro. No mundo real, no subconsciente de boa parte das pessoas, sobretudo dos jovens, percebe-se claramente a epidemia desse mero polarizar de possibilidades na área aqui abordada: ou se está namorando, ou é hora de “viver para valer” a rotina “livre” de desimpedido (a).
Schopenhauer definiu o Amor como manifestação de um desejo inconsciente de perpetuar a espécie. Pois conscientemente ninguém suportaria carregar o fardo pesado da "vontade de vida" (nome que ele deu ao desejo de perpetuar a espécie). Para ele, todas as juras de amor não passam de um artifício natural para garantir a sobrevivência da espécie. Por isso, o Amor romântico é uma invenção cristã.
Cabe a reflexão: fora da dualidade "amor a dois" e "vida de solteiro", hedonista com relações efêmeras, não há outros caminhos? A solidão não é uma possibilidade?
O universo dos manuais de autoajuda, com sua sede em responder perguntas de maneira “objetiva”, pela utilização de máximas que normalmente possuem, como um de seus erros principais, a generalização, a carência da contextualização das diferenças que existem entre os exemplares da nossa espécie, e, mesmo quando, sob algum ponto de vista, sorrateiras, frequentemente decisivas, também afasta-se bastante da verdade. Biologia, Fisiologia, Cultura, acontecimentos, bagagem pessoal, a ligação intrincada de cada um desses elementos que tornam cada um o que é, acabam sendo negligenciados em detrimento da procura de uma aparente solução, exprimível em um conselho de fácil digestão, quando na realidade nós, humanos, usualmente – e principalmente em áreas tão complicadas como essa -, não somos máquinas para termos nossos problemas resolvidos com uma fórmula, imperativa, mandatória, que ignora as individualidades, as idiossincrasias e mostra-se excessivamente rasteira, sem trazer para o debate outras possibilidades, sem fazer perguntas, sem abrir o leque para as devidas relativizações e ponderações.
De maneira geral, essas manifestações e obras culturais citadas, além dos equívocos e defeitos arrolados, fogem dos conceitos de sabedoria propostos pelos grandes filósofos, por pensadores e intelectuais clássicos. Ademais, depois dessa reflexão, cabem algumas perguntas: fora da dualidade “amor a dois” e “vida de solteiro, hedonista, relações efêmeras, despidas de qualquer vínculo”, não há outros caminhos? A solidão não é uma possibilidade? Calma, tempo para si, contemplação... Relacionamentos distintos, com outros contornos, não seriam válidos? E as diferenças de cada um, não devem ser melhor contextualizadas antes da divulgação de preconceitos que supostamente valem para todos? Para completar, se, verdadeiramente, escolhas sobre relacionamentos, o mundo exterior, a forma de se vincular a ele, têm sua relevância, não se negligencia erroneamente nossas características internas, biológicas, fisiológicas? E nossas tendências, vícios, que pairam no âmago, na psique? Nossa melhor adaptação a certo tipo de caminho, relação, cotidiano, e, por que não, nossa predisposição à felicidade, em termos essencialmente internos? Sabe aquela coisa do sujeito infeliz em um lugar, que pinta como firmamento outro diferente, e, quando ele passa a habitar, leva consigo toda a infelicidade, toda a melancolia? Uma analogia disso vale em vários aspectos, e poderia se estender a diversos campos da vida.
O interno, espécie de autossuficiência, a tranquilidade, e a volta para o ser são as chaves para chegar à felicidade, segundo Schopenhauer.
O refúgio na Arte como “salvação”
Ao lado de boa dose de autossuficiência e abnegação, Schopenhauer também defendia o refúgio na Arte como uma estratégia útil para a aproximação de uma vida mais feliz. A fruição nas obras artísticas genuínas seria capaz de trazer o “desligamento” da vontade por alguns instantes, de afastar dos tumultos de desejos por ela ocasionado, proporcionando a chamada apreciação desinteressada, um período de calmaria. A companhia das grandes mentes, de eminentes pensadores, ou melhor, de suas ideias, por meio de seus livros e produções diversas, era exaltada pelo alemão como um triunfo na procura de uma existência superior. Nessa esteira, se a limitação intelectual, para o filosofo, possuía vantagens – por, entre outros motivos, diminuir os estímulos para a vontade -, a inclinação para apreciar o oficio do gênio poderia ser um beneficio.
Flaubert, prodígio em seu realismo de mestre, em historias que mostram como as circunstâncias exteriores são capazes de frustrar os sonhos, e que escancaram o fracasso de homens que, frequentemente donos de temperamentos românticos, têm a mania de buscar o inacessível, também conclui: diante desse cenário obscuro, da costumeira austeridade do real, a melhor seria “o desprezo pelas tentações do mundo e o refúgio na Arte”.
O solteiro, normalmente, não é socialmente bem aceito. Por isso, até inconscientemente, as pessoas buscam freneticamente um parceiro para se relacionar, mesmo que isso não as façam se sentir verdadeiramente completas.
Abnegação e autossuficiência como escolha
Em toda a sua obra, a visão de Arthur Schopenhauer (1788-1860) sobre o que seria a sabedoria foge, basicamente, tanto da busca pelo prazer, da afirmação da vontade – supostamente contemplada numa existência inflamada e, normalmente, apenas no discurso, livre -, quanto da procura pela felicidade que dependeria decididamente de um amor, de um laço com o outro. O interno, uma espécie de autossuficiência, a tranquilidade, e a volta para o ser são as chaves para o filosofo alemão. Em Parerga e Paralipomena, ou em Aforismo, para a sabedoria de vida, essas concepções se apresentam latentes, sobretudo quando o pensador analisa as maneiras de tornar a existência melhor, mais agradável e feliz.
Segundo ele, a maior de todas as maravilhas não seria sagrar-se conquistador do mundo, do amado (a), de posses. Tornar-se dominador de si próprio – algo que apenas um seletíssimo grupo é capaz de atingir: essa sim seria a vitória suprema.
Já no livro O mundo como vontade e representação, Schopenhauer define o conceito de vontade, fundamental para a compreensão de seu sistema: uma força metafisica que atinge, está presente em todos os seres, rege o mundo e controla o homem, que não é, assim, guiado pela razão. Nessa linha, “nós não queremos uma coisa porque encontramos motivo para ela, encontramos motivos para ela porque a queremos”. O intelecto, em geral, trabalharia para a vontade, seria um escravo dela. Daí resultaria a dificuldade exorbitante de se possuir considerável domínio sobre si mesmo.
O casamento ainda é uma cobrança imposta pela sociedade, algo como um passo natural a ser dado na vida das pessoas e, por isso, torna-se uma obsessão caso não o seja concretizado.
Na filosofia de Schopenhauer, a sabedoria passa, primordialmente, por nos livrarmos da ditadura imposta pela vontade, tentando controlar da melhor forma, e o máximo possível, os desejos e impulsos dela advindos. Diante dessas teses, fica claro não somente a incompatibilidade destas com a procura pela realização, pela felicidade, por meio de uma vida fortemente atrelada à busca de conquistas amorosas, sexuais, ou das meras relações efêmeras tidas usualmente como típicas, naturais à vida de solteiro; enxergamos também que o ideal de amor perpetuado pelo cinema, nos moldes já descritos, no qual muitas vezes nossa “salvação” depende dessa completude do outro, “de algum outro”, em uma alta relação de dependência, não era defendido, por Schopenhauer, como ponto importante e efetivo no alcance de uma existência melhor. Afinal, nos contornos apresentados pelos filmes em geral, ele também estaria excessivamente entrelaçado a desejos e inquietações que fogem do simples voltar-se para si e, uma última análise, não seria parte de um processo de renúncia, de abdicação da procura efetiva “do lado de fora”.
André Comte-Sponville sobre relacionamentos: “Há casais fiéis e outros não. Pelo menos se entendermos por fidelidade, nesse sentido restrito, o uso exclusivo do corpo do outro. Por que só amaríamos uma pessoa? Por que só desejaríamos uma pessoa? Ser fiel a suas ideias não é ter só uma ideia; nem ser fiel em Amizade supõe que tenhamos um só amigo. Fidelidade, nesses domínios, não é exclusividade. Por que deveria ser diferente no Amor?”.
A procura de parceiro pela internet virou uma modalidade nova em nosso universo social, e o aumento de sites dessa espécie representa a solidão na sociedade pós moderna.
Abnegação, resignação, desapego: palavras centrais para a compreensão correta do que é exaltado por Schopenhauer. Influenciado pelo Budismo, pela Filosofia Oriental e, de certa forma, pelo Cristianismo, que teve vários de seus mandamentos e ensinamentos interpretados por ele como sendo espécies de alegorias da negação de vontade, tudo na obra schopenhaueriana, no que concerne à sabedoria, ao que seria mais frutífero para o interior da espécie humana, é repleto, esparge, lança ao ar, direta ou indiretamente, a procura pela tranquilidade, por algum tipo de desligamento, pelo aniquilamento, dentro do possível, de impulsos, desejos.
Para Schopenhauer, qualquer desejo, seja o de relacionamentos efêmeros ou o de laços duradouros, nasce da falta, e, quando é concretizado perde o seu valor.
Tratando de amor, especificamente, ele defendia que, em função da vontade, ambicionamos preservar a espécie. O amor, nessa esteira, seria uma ilusão: “Nenhuma união é tão infeliz quanto esses casamentos por amor – e precisamente pelo fato de que o seu objetivo é a perpetuação da espécie, e não o prazer do indivíduo”. “Só um filósofo pode ser feliz no casamento, e os filósofos não casam”. O verdadeiro mote, por trás da vontade de reproduzir, seria, em suma, a preservação da espécie, e para isso, “cada qual procura um companheiro que vá neutralizar seus defeitos, para que esses não sejam transmitidos”.
Em sintonia com todos esses pontos, há de se lembrar que, para o pensador alemão, qualquer desejo, não excluído seja o de relacionamentos efêmeros, de satisfazer impulsos imediatamente, ou o da edificação de laços mais duradouros, nasce da falta, e, a partir do momento no qual é concretizado, perde o seu valor. “(...) a vida oscila, como um pêndulo, da direita para a esquerda, do sofrimento para o aborrecimento: estes são os dois elementos de que ela é feita, em suma”. A falta geraria dor e desejo; este, na medida em que é alcançado, não satisfaria de modo consistente, duradouro, dando lugar ao tédio que, para Schopenhauer, é ainda pior para o homem do que o estado de ansiedade e sofrimento de falta, quando se quer algo que não se possui. “E a realização nunca satisfaz; nada é tão fatal para um ideal do que a sua realização”. E, além disso, “A paixão satisfeita leva com mais frequência à infelicidade do que à felicidade. Porque suas exigências muitas vezes conflitam tanto com o bem estar pessoal do interessado, que o prejudicam”. Nessa última passagem nota-se que não apenas a fugacidade dos louros colhidos com o atingir de um objetivo aparece como argumento contra a busca dele. O próprio processo de esforço par tal, em que frequentemente temos nosso “bem estar” ferido, surge como ponto ser observado, como diligencia, digamos, com pouco “custo-benefício”.
Se a companhia de um ente querido, de um parceiro, não é direta e expressamente despida de qualquer valor para Schopenhauer, no seu pensamento, enxergamo-nos em um posicionamento totalmente distante – difícil conceber separação, incompatibilidade maiores... – e em incontáveis acepções, oposto aos disseminados, expressos no senso comum, no ramo da autoajuda, no Cinema em geral. O amor, não apenas pelo fato de ser visto como uma máscara criada pelo desejo de preservar a espécie, no sentido decantado, na sétima arte, nas ruas (...) é desmistificado, até por ser colocado, de determinada maneira, nesses espaços, como salvação, como fonte direta para a felicidade, sem a contextualização devida do papel da autossuficiência e de outras complexidades.
A procura por saciar o desejo por relações transitórias, em si, também é questionada; entretanto, não só ela: o próprio estado espiritual e corporal que a acompanha aparece como natural nesse tipo de existência, “ansiosa, demasiadamente acesa”, repleta de estímulos; todo o aparato (consumo, trabalho, atrelados à vivência de um papel enxergado como o de sucesso, o “correto”) para projetarmos determinada imagem encarnarmos certo “tipo”, foge do avaliado por Schopenhauer.
Schopenhauer, em suas obras, foge da ideia de que a felicidade só viria se complementada na união com outra pessoa.
Ainda que não concorde com o pautar de uma teoria em qualquer concepção metafisica, e a despeito de exageros, simplismos, generalizações e erros que Schopenhauer, de fato, também comete, é inegável o acerto, o beneficio ao trazer para o plano da felicidade, da existência, a importância que pode possuir boa dose de abnegação, de desligamento, de volta para si, arrancando o foco excessivamente ancorado no que se adquire, se atrela ao mundo exterior, e naquilo que esquiva, pouco perpassa pela importância de nós mesmos, de nossa disposição interna, biológica, fisiológica, do que em nós foi influenciado pela cultura. Interessante também notar a diferença de um sistema filosófico clássico com o que se difunde hoje. E se recordarmos que Schopenhauer não foi exatamente um precursor, em variados aspectos, e que, essencialmente em sua linha de pensamento possui convergências decisivas – em pontos nos quais esses autores e escolas a seguir listados justamente também discordam do que está sendo tratado nesse artigo como comumente espalhado na atualidade – com Platão, Kant, Budismo, filosofias orientais diversas (...), fica mais latente a carência de sintonia, a oposição do que se vê na contemporaneidade como correto e/ou comportamento adotado, às vezes indiretamente apoiado, com distintas concepções clássicas.
Com a clareza peculiar ao texto schopenhaueriano, concluo com trecho de uma de suas máximas que, talvez, apresenta oposição mais flagrante ao que se alastra por aí, na atualidade: “Bastar-se a si mesmo; ser em tudo para si, e poder dizer ‘trago todas as minhas posses comigo’ (cf. Cícero, Paradoxa, I, I, 8, e Sêneca, Epistulae, IX, 18) é decerto a qualidade mais favorável para a nossa felicidade. Sendo assim, nunca é demais repetir a máxima de Aristóteles: ‘A felicidade pertence àqueles que bastam a si mesmos’ (Ét a Eud., 7, 2)”.
André Comte-Sponville preconiza que o amor, em sua mais pura verdade, é solidão. Pode ser considerado como duas solidões se completando.
Amor à Solidão
Dizer que existem muitas falhas em abordagens sobre o amor, as quais corriqueiramente vendem um ideal demasiadamente “inocente”, pueril, sonhador, fincado em versões, em potencias reflexos ainda que amenizados e recauchutados, da escola romântica, e/ou se perdem no simplismo, no reducionismo, por não se entrelaçarem com a complexidade humana e das coisas, dos acontecimentos, entre outras claudicações e distanciamentos da realidade, não é desprezar o valor que esse sentimento e a vida a dois pode ter. Nada perto disso. Também sequer aproxima-se de uma preterição, de uma desvalorização do impacto sensacional, positivo, que a companhia certa chega a ter na errante existência de nós mortais, ao dizer-se que boa dose de autossuficiência é indispensável para a beatitude, para a felicidade, que acaba dependendo unicamente de nós, como indivíduos.
André Comte-Sponville (1952) é certeiro, no seu Amor à Solidão, ao defender que devemos aceitar o outro como tal, ou seja, como outro, alguém diferente, e não como apêndices de nós mesmos, um instrumento pessoal que funciona de acordo com nosso belo prazer. “E é nisso que o amor, em sua verdade, é solidão”. Afinal para o pensador, o nobre sentimento não seria nada mais do que duas solidões se complementando, se protegendo, que se limitam e se inclinam diante da outra. “O amor não é o contrário da solidão. É solidão compartilhada, habitada, iluminada – e, às vezes, ensombrecida – pela solidão do outro. O amor é a solidão sempre; não que toda solidão seja amante, longe disso, mas porque todo amor é solitário. Ninguém pode amar em nosso lugar, nem em nós, nem como nós”.
Eu, Álison
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