Em nosso país, infelizmente, a divulgação dessas obras se deram mais por intermédio de adaptações ligeiras - que adocicam as aventuras para enquadrá-las no gênero conto de fadas - de que por suas versões originais, coisa que só aconteceu bem recentemente. Acreditamos, por isso, que o conteúdo das Alices ainda permanece desconhecido de boa parte do público brasileiro.
É fato que, com o passar do tempo, as Alices foram ganhando mais a atenção do publico adulto do que propriamente a do infantil, e personagens insólitos como o Chapeleiro Maluco, a Lagarta, Gato que ri, a Rainha de Copas começaram a exercer fascínio sobre a mente de filósofos, psicólogos e educadores. Isso porque muito dos temas das histórias de Alice se prestam a uma decifração lógico matemática, e exibem uma intrincada rede de significações fincadas no pensamento dos filósofos estoicos gregos. Pelas Alices proliferam séries de paradoxos, alogismos, enigmas e jogos semânticos, além de um elenco extenso de imagens do inconsciente, algo que, convenhamos, não estaria necessariamente no lista de interesses imediatos das crianças.
Se é assim, por que Lewis Carroll teria escrito algo tão "complicado"? É preciso lembrar que o autor era dono de uma personalidade excêntrica e que escreveu seus dois livros para Alice Liddell, uma menina bastante inteligente e fascinada pelas traquinagens mentais de seu mentor. Ademais, na segunda metade do século XIX, estamos na recatada Inglaterra vitoriana, época em que algumas das saudáveis diversões infantis eram recitar poemas trocadilhescos, entoar paródias de canções e decorar histórias edificantes. Época do nascimento da puericultura, pela qual se visava educar crianças administrando seus desejos.
Tanto em As Aventuras de Alice no País das Maravilhas como em Através do Espelho - e o que encontrou por lá, Lewis Carroll explora o elemento arquetípico do trajeto, da viagem de um herói a um país distante. Um enredo que confere interesse e excitação imediatas aos leitores, pois como lembra o filósofo francês Gilles Deleuze (1925 - 1995): "A criança não para de dizer o que faz ou tenta fazer: explorar os meios, por trajetos dinâmicos. e traçar o mapa correspondente. Os mapas dos trajetos são essenciais à atividade psíquica." Nos dois volumes de Carroll, é evidente o desenho de um percurso exploratório. Mas trata-se de uma viagem singular a "países" paradoxalmente reconhecíveis e desconhecidos, regidos por absurdas leis do mundo dos sonhos. E aí encontramos a chave do universo carrolliano: o onirismo, a superposição de trajeto da realidade e do sonho, o sonho dentro do sonho, com toda a gama de oposições e inversões, cuja metáfora seria o próprio espelho ou o jogo de xadrez com o tabuleiro e peças perfiladas frente a frente (outro espelho!), um pouco à maneira das gravuras de M. C. Escher.
As viagens das Alices parecem uma espécie de rito de passagem moderno. Elas colocam a menina Alice em situações em que se discutem problemas de identidade, tão importantes a uma menina que está passando da infância para a adolescência. Após crescer e encolher seguidas vezes, a questão socrática do "conhece-te a ti mesmo", é colocada para Alice numa fábula encenada no capítulo 'Conselhos de uma Lagarta' de As Aventuras de Alice no País das Maravilhas.
A Lagarta, sentada sobre um cogumelo e fumando seu narguilé, pergunta à Alice: "Quem é você?". E a menina responde: "Sei quem eu era quando me levantei hoje de manhã, mas acho que me transformei várias vezes desde então". A Lagarta rispidamente pede que a menina se explique. Alice diz que não pode se explicar porque ela não é ela. A questão do conhecimento de si se projeta para a questão do conhecimento dos outros e Alice diz à Lagarta: "Bom, quem sabe a sua maneira de sentir seja diferente, mas o que sei é que tudo isso pareceria muito esquisito para mim." Como Alice pode saber se a Lagarta tem sentimentos ou pode pensar? O problema assume uma dimensão mais ampla, pois Alice, não sabendo quem é, não pode ter certeza a respeito do mim a que seus sentimentos pertencem. Alice ainda pergunta à Lagarta quem ela (lagarta) é. A Lagarta reponde com uma pergunta: "Por quê?". Então Alice se dá conta de que não há razão por quê, pois se a Lagarta tivesse respondido "Sou uma lagarta", isso de nada adiantaria, pois é filosoficamente impróprio. Afinal, um nome ou uma condição social não diz absolutamente nada a respeito de nossa essência última.
Noutro ponto da cena, Alice considera a altura de oito centímetros lamentável, ao passo que a Lagarta julga um tamanho muito bom. O que para Alice é óbvio merece uma outra visão do bichinho que enxerga o mundo por sua própria ótica. Por fim, para que Alice prossiga sua viagem controlando seus tamanhos, a Lagarta lhe oferece um cogumelo. Mordendo de um lado, ele o fará crescer; mordendo de outro, ele o fará diminuir. Porém, como é possível falar dos lados direito e esquerdo de um cogumelo perfeitamente redondo? Mais uma vez tudo se passa do ponto de vista do animal, para quem um círculo pode ter lado.
O problema tocado pela fábula é como "pensam" as Lagartas, ou melhor, como pensam as outras pessoas. O que eu chamo de liberdade é a mesma coisa que você chama de liberdade? O azul que eu enxergo é o mesmo que todas as pessoas enxergam? Por trás dessa história absurda (nonsense) encerra-se uma discussão profunda sobre o respeito à diferença de pensamento. Talvez seja esse um dos belos achados que Alice traga a quem se aventure a segui-la em suas maravilhosas viagens. Um trajeto pelo mundo dos sonhos que nos resgata a realidade.
Eu, Álison
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